sábado, 7 de abril de 2012

AUTOS DO FOGO ANALÓGICO, de António Cândido Franco

Um quadro de "Autos do fogo analógico: cenas de teatro", de António Cândido Franco (a sair brevemente)


* * * * *

ERNESTO SAMPAIO

Da combustão do nosso encontro, duas partes se separarão: uma prosseguirá em vida, outra afastada será pela morte. Não morreremos juntos; um de nós sofrerá a ausência do outro, sofrerá a dor mais atroz… a solidão! Que destino tão atroz para aquele que ficar…

FERNANDA ALVES

Que dizes, amor?

ERNESTO SAMPAIO

Temo por um de nós; temo pelo que ficar. Contra o mundo sórdido, contra a matéria abjecta tivemos nós, maravilha, o nosso Amor; vivemos sempre em fogo, enquanto à nossa volta tudo era cinza.

FERNANDA ALVES

Respiramos do lado da luz!

ERNESTO SAMPAIO

Tu és a Rosa do fogo incendiário, a Rosa nua de brancura, a Rosa branda e mística. Desta morada fazes o Paraíso e do seu tecto o céu em fogo.

FERNANDA ALVES

Sem o teu coração ardente o Inferno da abjecção não podia ser redimido.

ERNESTO SAMPAIO

Que será daquele que aqui ficar sem o outro?

(. . .)

FERNANDA ALVES

Como salvou Pedro depois de perder Inês. Que ilusão feliz e magnífica o beija-mão real de Santa Clara! É a máscara do bonecreiro que liberta o ser do mundo; a máscara dá a liberdade de ser tudo e nada. Pelo teatro somos todo o mundo e ninguém; estamos presentes e somos ausentes. Só o teatro liberta e nos deixa amar.

ERNESTO SAMPAIO

Com a morte dum de nós passar-se-á do Amor à solidão. A morte é o momento em que nos roubam a ilusão da máscara. A máscara é a eternidade! Como me poderás amar sem a máscara?

FERNANDA ALVES

Nada receies, amor. A máscara nunca desaparece. Continuo a ser todas as mulheres que fui em palco; nada passa, tudo fica. Ainda hoje tenho em mim a força da grande imprecação diante das muralhas da cidade. Quanto mais me dou às máscaras, menos sou minha. Ser minha é ser o que me impede de ser tua. Quanto menos minha, mais tua, amor.

ERNESTO SAMPAIO

A máscara é a Poesia, o Oiro alquímico! O mundo é a História, o chumbo tóxico. Mas a Morte interrompe a Obra…

FERNANDA ALVES

Não! A Morte não interrompe! A Obra só rompe quando falta o Amor.

ERNESTO SAMPAIO

Aquele que ficar da combustão do nosso encontro, viverá então a Morte como uma operação do Amor.

FERNANDA ALVES

No momento em que um de nós se sentir só, morre. Morre, porque a Morte é uma operação do Amor e o Amor não suporta a solidão. Se um de nós sobreviver ao outro, como temes, só em Saudade poderá viver. Em solidão, morre. A Saudade é eterna; quem vive em Saudade nunca morre. Só morre o que passa da Saudade à solidão.

ERNESTO SAMPAIO

E a Morte será a fuga à solidão.

FERNANDA ALVES

A Morte será o sinal mesmo da impossibilidade de estar só. A Morte será o Amor.

(o enxofre e o mercúrio beijam-se ao rubro)

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