segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

PRANTO DE CORAL, por Leonora Rosado






Faço o mesmo caminho para casa, algumas buganvílias pendem de um muro, lilases, rubras e amarelecidas. Como o tempo poisou sobre o meu rosto, como a hera domesticou outros muros. Sei situar-me na estrada de dentro, no rubro esplendor de um norte que vai ganhando ferrugem. Faço o mesmo percurso dentro, dentro de mim e algo me é estranho. O ciclope transformado em vento, uma casa deve ter ruído dentro de mim. Faço o caminho pelo ângulo obscuro de mais um anoitecer, e de súbito, tudo se transfigura. Espero o teu rosto na ínfima iluminação do meu peito. E de um toque brusco de sombra, o meu corpo eleva-se, ninguém sem ser eu apreende esta oscilação. Volto atrás e pergunto-me, terá cada pedra da calçada intuído este movimento? A minha voz tornou-se quente, maligna voz de contralto. O calor é intenso, os muros acabaram por renunciar a qualquer expectativa. Percorro cada um dos meus anseios, vejo cada expressão da minha face no espelho da memória. Sinto agora o arrefecer das cores. Por onde andei, ninguém me acompanharia. Ninguém compreenderia. Quando te debruças demasiado para dentro da palavra, esta insinua-se e perfura-te.


isbn: 978-989-8789-49-5

120 páginas

Pvp: 12 €

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