MANUEL
SILVA-TERRA
UM ESTRANHO
BUCOLISMO
António
Carlos Cortez - J.L. 19 de março
É sabido que o
bucolismo, de antiga tradição, tem no tópico do locus amoenus umas das suas características ideológicas e temáticas.
Cantar a harmonia entre sujeito e natureza é o que anima o canto na arcádia,
dando à flauta – atributo do poeta órfico – um significado duplo: instrumento
encantatório, apaziguador da natureza e seus elementos e símbolo da maestria
rítmica. Angelo Poliziano, por exemplo, tem na sua composição «A Flauta de
Orfeu» uma das mais belas e acabadas expressões do bucolismo, relacionado com a
reflexão sobre a descida ao Hades e a meditação em torno da tragédia que o
episódio dessa descida em si mesmo encerra. Entre o tom trágico e as amenidades
bucólicas, dir-se-ia que a tradição bucólica, primeiramente empenhada em
exaltar a vida campestre, evoluiu depois para formas poéticas em que à certeza
dos valores rurais sucede o lamento, o tom elegíaco do discurso, como se o
bucolismo deixasse de ser um canto benigno... Aliás, Fiama Hasse Pais Brandão,
num belíssimo poema inserto em Cenas
Vivas (2000), parece despedir-se do bucolismo. O poema intitula-se «O
Bucolismo deixará de ser um canto» e aí se diz que o poeta, que sempre viveu «à
beira da paisagem / pensando-a como ser, vendo-a», e sabia que essa paisagem
«era mundo, antigo e breve, terrestre / leitor de homens», acolhe no seu olhar
a aparência da paisagem, não já a essência dessa paisagem. Num presente que tem
como monstro e emblema a técnica e o perigo do nuclear (Fiama refere-se ao
grande Minotauro do presente: Chernobyl e cujo hálito é «oposto ao antigo sopro
do Génesis»), o bucolismo deixa de ser um canto «pois a flauta cala o seu trilo
de esperança».
Na senda dessa
desesperança Manuel Silva-Terra dá-nos um dos mais belos livros deste ano de
2014. Intitula-se Pastor de Pedras
(Licorne) e todo escrito em poemas sempre com três tercetos, talvez Silva-Terra
venha recuperar o que em Fiama era já essa perda da esperança. Desde Cesário o
bucolismo se mistura com as visões infernais da cidade e se o poeta recorda o
campo é só por necessidade de evasão e escape. No «vale escuro das muralhas»,
emparedados, não se ouve sequer o choro de uma nora... E Caeiro não deixa de
ser a assumpção de um projecto falhado, o do canto bucólico, o da possibilidade
de existência de um poeta que fosse o próprio bucolismo no tempo da supremacia
da máquina. Por isso tem de morrer primeiro e tornar-se o mestre ritualizado
que anima, menmonicamente, a poesia dos seus discípulos. Silva-Terra, que já em
livros anteriores tinha insinuado o seu interesse por fazer uma poesia de
resistência do campo em face da cidade, lugar do mal, regressa para cantar um
estranho bucolismo.
De facto, os
poemas colocam a voz num discurso em diferido, falando-se de alguém que desce
«ao magma fundente» e se transforma «em pedra abrasada». Fala-se de alguém
(Orfeu?) que «será reconhecido pela sua serena embriaguez.»; alguém que
«Entrará pelo pórtico / febril do canto.» e que «Com a linguagem de fogo escava
a rocha». Que o acto de escavar a rocha, na modernidade poética, tem algo de
similar ao acto de escavar a linguagem, o poema – pedra que se deve polir –,
eis o que acaba por fazer destes tercetos verdadeiras artes poéticas. Que essas
artes poéticas mostram um pensamento sobre o tempo (Cronos) e sobre o Kaos (a
«destruição da destruição») e o Kosmos, tal se fica a dever ao facto de nesta
poesia haver um fundo filosófico inescapável. Poesia e filosofia, bucolismo e
desespero de Orfeu no tempo da grande Medusa, no tempo do grande Eclipse (da
linguagem, da música, do humano e do divino), em Pastor de Pedras o discurso é sempre em tom evocativo, em clave
soturna, silenciosa. Acompanhamos o percurso de alguém em torno da pedra e seus
múltiplos significados. Se Ramos Rosa comparece aqui é por inversão de um
símbolo: Silva-Terra não respira, como Ramos Rosa, «a sombra viva», mas sim a
pedra morta. A pedra-poema, a pedra-vida, a pedra-amor, a pedra-pensamento, ou
a pedra na sua literal materialidade, tudo converge para uma poesia que se
deseja também sóbria, nunca exclamativa, e de certo modo empedernida. Veja-se, a título de exemplo, como se fala das «pedras
comunicantes: friáticas e fundentes», como se convoca o poeta, figurado como
«pastor perdido de si mesmo» ou o modo como, por meio da metáfora e da imagem,
a pedra é a pessoa: «Quando uma pedra (cujos olhos são espelhos) olha outra /
pedra de frente ferem-se de morte mutuamente. Agora / regressarás à tua forma
informe. Quando renasceres ser-//-te-á dado apenas um olho com o qual olharás o
/ Passado. O tempo já não é o reflexo do Céu estrelado / que foste. Terás
sempre a Morte a perseguir-te como uma // sombra errante e fugidia. Passarás o
Intempo da tua / existência a tentar fugir desta sombra sempre próxima. /
Demasiado ofuscante para que a possas ignorar.» (p.65).
Pastor de Pedras é um livro seguro. O léxico é
escolhido com imenso cuidado selectivo (sempre em torno do campo lexical da
pedra, assim se fala de xisto, basalto, calcário, seixo; mas de também de fogo,
do deus do fogo; de um «coração de pedra» e do próprio Orfeu, «pedra que
canta») e os poemas ganham em significados diversos, uma vez que Silva-Terra
soube equilibrar a alusão e a referencialidade. O rigor dos versos, alguns
fazendo quebras em staccato, é sempre
medido, suspendendo as frases para tornar a leitura um exercício de lentidão.
Mesmo se se pretende construir uma imagem, se se molda um cenário (Sísifo
descendo uma encosta, com «olhos virados para dentro» e «um pensamento sem
lágrimas»), os tercetos dão sempre a senesação de terem sido reescritos,
trabalhados como o ferro se trabalha, com mão dura e precisão de alquimista.
Manuel Silva-Terra, que tem publicada uma obra já com inúmeros títulos (O Céu é o Deserto (Fenda);Campos Magnéticos (Casa do Sul), ou o
recente Lira, de 2009, com chancela
da Licorne) e que traduziu hai-kai, é um poeta discreto. Editor, vive em Évora
e ensina Filosofia. Com este seu livro de pedra atinge, quanto a nós, um dos
momentos mais altos da sua expressão poética.
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