quarta-feira, 19 de março de 2014

PASTOR DE PEDRAS NO J.L.


MANUEL SILVA-TERRA

UM ESTRANHO BUCOLISMO

António Carlos Cortez                         - J.L. 19 de março 

                É sabido que o bucolismo, de antiga tradição, tem no tópico do locus amoenus umas das suas características ideológicas e temáticas. Cantar a harmonia entre sujeito e natureza é o que anima o canto na arcádia, dando à flauta – atributo do poeta órfico – um significado duplo: instrumento encantatório, apaziguador da natureza e seus elementos e símbolo da maestria rítmica. Angelo Poliziano, por exemplo, tem na sua composição «A Flauta de Orfeu» uma das mais belas e acabadas expressões do bucolismo, relacionado com a reflexão sobre a descida ao Hades e a meditação em torno da tragédia que o episódio dessa descida em si mesmo encerra. Entre o tom trágico e as amenidades bucólicas, dir-se-ia que a tradição bucólica, primeiramente empenhada em exaltar a vida campestre, evoluiu depois para formas poéticas em que à certeza dos valores rurais sucede o lamento, o tom elegíaco do discurso, como se o bucolismo deixasse de ser um canto benigno... Aliás, Fiama Hasse Pais Brandão, num belíssimo poema inserto em Cenas Vivas (2000), parece despedir-se do bucolismo. O poema intitula-se «O Bucolismo deixará de ser um canto» e aí se diz que o poeta, que sempre viveu «à beira da paisagem / pensando-a como ser, vendo-a», e sabia que essa paisagem «era mundo, antigo e breve, terrestre / leitor de homens», acolhe no seu olhar a aparência da paisagem, não já a essência dessa paisagem. Num presente que tem como monstro e emblema a técnica e o perigo do nuclear (Fiama refere-se ao grande Minotauro do presente: Chernobyl e cujo hálito é «oposto ao antigo sopro do Génesis»), o bucolismo deixa de ser um canto «pois a flauta cala o seu trilo de esperança».
Na senda dessa desesperança Manuel Silva-Terra dá-nos um dos mais belos livros deste ano de 2014. Intitula-se Pastor de Pedras (Licorne) e todo escrito em poemas sempre com três tercetos, talvez Silva-Terra venha recuperar o que em Fiama era já essa perda da esperança. Desde Cesário o bucolismo se mistura com as visões infernais da cidade e se o poeta recorda o campo é só por necessidade de evasão e escape. No «vale escuro das muralhas», emparedados, não se ouve sequer o choro de uma nora... E Caeiro não deixa de ser a assumpção de um projecto falhado, o do canto bucólico, o da possibilidade de existência de um poeta que fosse o próprio bucolismo no tempo da supremacia da máquina. Por isso tem de morrer primeiro e tornar-se o mestre ritualizado que anima, menmonicamente, a poesia dos seus discípulos. Silva-Terra, que já em livros anteriores tinha insinuado o seu interesse por fazer uma poesia de resistência do campo em face da cidade, lugar do mal, regressa para cantar um estranho bucolismo.
De facto, os poemas colocam a voz num discurso em diferido, falando-se de alguém que desce «ao magma fundente» e se transforma «em pedra abrasada». Fala-se de alguém (Orfeu?) que «será reconhecido pela sua serena embriaguez.»; alguém que «Entrará pelo pórtico / febril do canto.» e que «Com a linguagem de fogo escava a rocha». Que o acto de escavar a rocha, na modernidade poética, tem algo de similar ao acto de escavar a linguagem, o poema – pedra que se deve polir –, eis o que acaba por fazer destes tercetos verdadeiras artes poéticas. Que essas artes poéticas mostram um pensamento sobre o tempo (Cronos) e sobre o Kaos (a «destruição da destruição») e o Kosmos, tal se fica a dever ao facto de nesta poesia haver um fundo filosófico inescapável. Poesia e filosofia, bucolismo e desespero de Orfeu no tempo da grande Medusa, no tempo do grande Eclipse (da linguagem, da música, do humano e do divino), em Pastor de Pedras o discurso é sempre em tom evocativo, em clave soturna, silenciosa. Acompanhamos o percurso de alguém em torno da pedra e seus múltiplos significados. Se Ramos Rosa comparece aqui é por inversão de um símbolo: Silva-Terra não respira, como Ramos Rosa, «a sombra viva», mas sim a pedra morta. A pedra-poema, a pedra-vida, a pedra-amor, a pedra-pensamento, ou a pedra na sua literal materialidade, tudo converge para uma poesia que se deseja também sóbria, nunca exclamativa, e de certo modo empedernida. Veja-se, a título de exemplo, como se fala das «pedras comunicantes: friáticas e fundentes», como se convoca o poeta, figurado como «pastor perdido de si mesmo» ou o modo como, por meio da metáfora e da imagem, a pedra é a pessoa: «Quando uma pedra (cujos olhos são espelhos) olha outra / pedra de frente ferem-se de morte mutuamente. Agora / regressarás à tua forma informe. Quando renasceres ser-//-te-á dado apenas um olho com o qual olharás o / Passado. O tempo já não é o reflexo do Céu estrelado / que foste. Terás sempre a Morte a perseguir-te como uma // sombra errante e fugidia. Passarás o Intempo da tua / existência a tentar fugir desta sombra sempre próxima. / Demasiado ofuscante para que a possas ignorar.» (p.65).

Pastor de Pedras é um livro seguro. O léxico é escolhido com imenso cuidado selectivo (sempre em torno do campo lexical da pedra, assim se fala de xisto, basalto, calcário, seixo; mas de também de fogo, do deus do fogo; de um «coração de pedra» e do próprio Orfeu, «pedra que canta») e os poemas ganham em significados diversos, uma vez que Silva-Terra soube equilibrar a alusão e a referencialidade. O rigor dos versos, alguns fazendo quebras em staccato, é sempre medido, suspendendo as frases para tornar a leitura um exercício de lentidão. Mesmo se se pretende construir uma imagem, se se molda um cenário (Sísifo descendo uma encosta, com «olhos virados para dentro» e «um pensamento sem lágrimas»), os tercetos dão sempre a senesação de terem sido reescritos, trabalhados como o ferro se trabalha, com mão dura e precisão de alquimista. Manuel Silva-Terra, que tem publicada uma obra já com inúmeros títulos (O Céu é o Deserto (Fenda);Campos Magnéticos (Casa do Sul), ou o recente Lira, de 2009, com chancela da Licorne) e que traduziu hai-kai, é um poeta discreto. Editor, vive em Évora e ensina Filosofia. Com este seu livro de pedra atinge, quanto a nós, um dos momentos mais altos da sua expressão poética.

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