quarta-feira, 5 de março de 2014

Isabel Aguiar escreve sobre Pastor de Pedras












Pastor de Pedras de Manuel Silva-Terra


O poço é o olho da lua

Estrelas confiscadas à Via Láctea brilham no seio do poema – eis como poderia ser definida a matéria do Pastor de pedras, que por certo manteve o poeta muitas noites e muitos dias a cuidar com desvelo cada unidade sintagmática, cada palavra –átomo – pedra cristalina que jorra do silêncio depois de muita escuta : o leitor pensa-se simultâneo da escrita, sonha-se assistindo à separação entre o caos e o cosmos, como o poeta, que transpõe o umbral entre o antes e o depois. Cada unidade, construída com a esfericidade do universo, é Verbo.

Manifestamente testemunha de todos os princípios, é o poeta: se a escrita é muitas vezes aforística, às vezes impende sobre nós (extensão de um “tu”) um tom sentencioso - oracular: “Serás pedra”.

No bing bang que se prolonga até hoje, os tempos do passado coexistem com os tempos do presente, o texto conduz-nos a um espaço de amplitude infinita e infinda, contrastivo com a vida curta dos homens. O pastor é um guardador sideral de rebanhos da Via Láctea.

Se este livro é “uma aguda dor de ser”, nele encontrei a mais ajustada definição que se pode atribuir ao poeta “Com alfinetes de dama a criança vazou os olhos da pedra”. Ou ainda:“ Os poetas criam a substância – não as qualidades. E os poetas vão morrer. Mas antes queimam o coração. “

“Senti o pavor do infinito.” Quem é o “eu”? Desde o início, entramos num labirinto com muitas salas e antessalas para descortinar, numa multiplicidade de pessoas gramaticais que adensam a misteriosa matéria da Poesia.

“O Discurso do Tempo”: o Poema está perante um vitral que refracta a luz de todos os tempos, um espelho de um espelho: tudo é igual a tudo, porque quer na antiguidade quer na idade contemporânea, os medos, os receios, o pavor de tudo, dos espaços vazios, dos buracos negros, afectam quem vive. Há figuras mitológicas explicitamente convocadas, sem no entanto haver qualquer programa que nos pudesse limitar a leitura. Se o poeta enuncia as origens, a jusante existe a condição humana projectada no espaço celestial constelado de Plêiades, vertendo luz azul. O azul predomina nesta escrita visual que nos dá a tonalidade da Criação, por vezes numa amplitude explosiva de vida: “Um seixo alto derrama-se pelo leito da lua. Um seixo alto todo branco. Todo leite e espuma do mar. Pedra Espermática: sangue do deus.   Espermatrix. O seixo das tranças abriu as janelas do mar sobre. Que se retirou para os vidros azuis dos olhos. Lágrima. Azul-água- forte   …   (antes do pincel, antes da luz)”. O poema surge do Kaos, plasma as primeiros instantes do surgimento da vida, organiza um espaço mental e poético único: a ante-criação, a criação, a pós-criação são etapas que se intercalam com pausas de respiração dadas pela própria sintaxe, muitas vezes quebrada, que nos deixa alquebrados perante tanta força.

 Não poderei deixar de destacar a atenção que é dada à epopeia de Gilgamesh e à cidade de Ur, que, conforme me explicou o Manuel Silva-Terra, era uma cidade anterior à existência das portas, com entradas pelos tectos abertos.

Também o poema não tem portas que o fechem – vive do ar que inspira dos céus e deixa um rasto inapagável como um risco de giz sobre o xisto.

O livro abre para um infinito de leituras numa geometria poliédrica:

A pedra a pedra a pedra –

Disseminada ao longo da escrita,
A tudo interroga

A todos interroga:

Pedra essência –pedrês

Porque nunca esta escrita dá certezas

Nunca se fecha

Pesa-se numa balança a matéria exacta (nem demais nem de menos) da palavra:

Quantas palavras novas? “Halocinação”, “Solvivo”, “impedra”, “aluzinação”, “Intempo”,”orfeudade”. As que existem, tantas vezes não são suficientes para traduzir o esplendor ou o terror.

Poema inquietante – desassossega-nos, às vezes parece que mos imerge num sono hipnagógico, ou também na atmosfera magnética das Mil e uma Noites. Caminho místico? Litúrgico? O que parece é que nas reflexões sobre a existência, desde que a escrita foi plasmada – quer em papiros, traduzindo a vida post mortem (o deus egípcio Amon-Ré e a sua balança de almas), quer em tábuas de barro, como Gilgamesh, tudo se torna intemporal e universal na equação dos factos cosmológicos.

Perto do final, há uma procissão: “com velas de azeite navegavam as pedrinhas”- muito belo!



Isabel Aguiar

Sem comentários:

Enviar um comentário

os amigos da editora