O poço é o olho da lua
Estrelas confiscadas à Via Láctea brilham no seio do poema –
eis como poderia ser definida a matéria do Pastor
de pedras, que por certo manteve o poeta muitas noites e muitos dias a
cuidar com desvelo cada unidade sintagmática, cada palavra –átomo – pedra
cristalina que jorra do silêncio depois de muita escuta : o leitor pensa-se
simultâneo da escrita, sonha-se assistindo à separação entre o caos e o cosmos,
como o poeta, que transpõe o umbral entre o antes e o depois. Cada unidade,
construída com a esfericidade do universo, é Verbo.
Manifestamente
testemunha de todos os princípios, é o poeta: se a escrita é muitas vezes
aforística, às vezes impende sobre nós (extensão de um “tu”) um tom sentencioso
- oracular: “Serás pedra”.
No bing bang que se prolonga até hoje, os tempos do passado
coexistem com os tempos do presente, o texto conduz-nos a um espaço de
amplitude infinita e infinda, contrastivo com a vida curta dos homens. O pastor
é um guardador sideral de rebanhos da Via Láctea.
Se este
livro é “uma aguda dor de ser”, nele encontrei a mais ajustada definição que se
pode atribuir ao poeta “Com alfinetes de dama a criança vazou os olhos da
pedra”. Ou ainda:“ Os poetas criam a substância – não as qualidades. E os
poetas vão morrer. Mas antes queimam o coração. “
“Senti o
pavor do infinito.” Quem é o “eu”? Desde o início, entramos num labirinto com
muitas salas e antessalas para descortinar, numa multiplicidade de pessoas
gramaticais que adensam a misteriosa matéria da Poesia.
“O Discurso do Tempo”: o Poema está perante um vitral que
refracta a luz de todos os tempos, um espelho de um espelho: tudo é igual a
tudo, porque quer na antiguidade quer na idade contemporânea, os medos, os
receios, o pavor de tudo, dos espaços vazios, dos buracos negros, afectam quem
vive. Há figuras mitológicas explicitamente convocadas, sem no entanto haver qualquer
programa que nos pudesse limitar a leitura. Se o poeta enuncia as origens, a
jusante existe a condição humana projectada no espaço celestial constelado de Plêiades,
vertendo luz azul. O azul predomina nesta escrita visual que nos dá a
tonalidade da Criação, por vezes numa amplitude explosiva de vida: “Um seixo
alto derrama-se pelo leito da lua. Um seixo alto todo branco. Todo leite e
espuma do mar. Pedra Espermática: sangue do deus. Espermatrix. O seixo das tranças abriu as
janelas do mar sobre. Que se retirou para os vidros azuis dos olhos. Lágrima.
Azul-água- forte … (antes do pincel, antes da luz)”. O poema
surge do Kaos, plasma as primeiros instantes do surgimento da vida, organiza um
espaço mental e poético único: a ante-criação, a criação, a pós-criação são
etapas que se intercalam com pausas de respiração dadas pela própria sintaxe,
muitas vezes quebrada, que nos deixa alquebrados perante tanta força.
Não poderei deixar de
destacar a atenção que é dada à epopeia de Gilgamesh e à cidade de Ur, que,
conforme me explicou o Manuel Silva-Terra, era uma cidade anterior à existência
das portas, com entradas pelos tectos abertos.
Também o poema não tem portas que o fechem – vive do ar que
inspira dos céus e deixa um rasto inapagável como um risco de giz sobre o xisto.
O livro abre
para um infinito de leituras numa geometria poliédrica:
A pedra a
pedra a pedra –
Disseminada
ao longo da escrita,
A tudo
interroga
A todos
interroga:
Pedra
essência –pedrês
Porque nunca
esta escrita dá certezas
Nunca se
fecha
Pesa-se numa
balança a matéria exacta (nem demais nem de menos) da palavra:
Quantas
palavras novas? “Halocinação”, “Solvivo”, “impedra”, “aluzinação”,
“Intempo”,”orfeudade”. As que existem, tantas vezes não são suficientes para traduzir
o esplendor ou o terror.
Poema inquietante – desassossega-nos, às vezes parece que mos
imerge num sono hipnagógico, ou também na atmosfera magnética das Mil e uma
Noites. Caminho místico? Litúrgico? O que parece é que nas reflexões sobre a
existência, desde que a escrita foi plasmada – quer em papiros, traduzindo a
vida post mortem (o deus egípcio Amon-Ré e a sua balança de almas), quer em
tábuas de barro, como Gilgamesh, tudo se torna intemporal e universal na
equação dos factos cosmológicos.
Perto do
final, há uma procissão: “com velas de azeite navegavam as pedrinhas”- muito
belo!
Isabel
Aguiar
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