sexta-feira, 8 de março de 2013

Poemas dos amigos licorneanos: ANTÓNIO NUNES



al-alentejo



Trabalho por dentro

da cabeça exaltada:

exerço a beleza da minha loucura,

há muito silêncio sempre o silêncio.

No labirinto ocre da paisagem canta

o alaúde modelando a noite

e o dia.

Depois digo: - o trigo arde nos campos exaspera

de tanta luz.

Na sombra o ancião uma voz

que diz: - em espessas zonas de silêncio

cresceu uma árvore alimentou-se

nos subterrâneos.



*




Eu vivo para além dos rios,


vivo nas areias anatómicas e cavernosas da memória,

nos labirintos exaltados do poema.

Fui tocado pela mão direita de Deus

no instante genial

do corte umbilical desde a filiação dos ossos

à massa líquida do sangue.

Recordo a água dos rios

nas margens tenebrosas do esquecimento

falo vivo enlouqueço nas águas:

de fome desespero alegria encantamento,

a noite é minha digo:

na minha loucura sombriamente pura

chamam-me louco desesperado da vida.

Deixem-me abandonar o mundo,

não vou amar nada

nem as palavras ninguém nada.

A artéria iluminou-se de luz branca,

as mães deram-me o canto

na sua condição de mães brotavam alegria pelos olhos,

brilhavam iluminavam-se por dentro.

Eu absorvia.

Observava o movimento dos astros:

crescia de encontro ao mundo.

Desenvolvia-se a matéria,

o poema esse é puro negro

como a noite.





*


Sobre a fome


A rua alonga-se à boca

da noite escura,

escurecem as árvores ganham volume

agigantam-se na luz da lua.

Pequenas luzes afastam da noite o branco

das casas iluminam-se aqui

e além por dentro.

Rugosas mãos e rostos esculpidos ao longo do tempo

ganham forma de dentro para fora

da noite

nas casas nos cafés nas tabernas

da planície luarenta.

Vozes casas pão vinho e a minha fome

acompanha a noite:

alimento-me da água estancada nas paredes

da casa bebo em abundância,

o estômago cede na trama dos nervos

acidamente endurecidos.

Já dias e noites houve em que a água

alimentou o sangue grosso estancado nas veias:

tremia de comoção, ouvia a voz dos pobres:

-tens pão? Tremiam de fome rememorando

com os buracos dos olhos abertos,

a voz dos mortos: - É a miséria, não há pão!

Remexo no silêncio calcinado da noite.

Exaltam-se as palavras na voz dos mortos:

-É doloroso ter fome.

A memória da minha queda

no abismo avoluma-se no túmulo

sem conteúdo.

Das bátegas de água chuvosa na janela,

ascendo no acto da escrita.
*

ANTÓNIO NUNES tem 48 anos e vive no Alentejo.

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