domingo, 17 de janeiro de 2010

Joel Henriques na Casa Fernando Pessoa

Carta de um quase crítico ao seu poeta J. H. sobre o livro A Claridade
Pediste-me para apresentar a tua poesia, nomeadamente o teu segundo livro, A Claridade. Não sei se estou capacitado, afinal, coloquei de parte a minha actividade sobre a literatura quando terminei o curso. É verdade que me esforcei por apreender os conceitos até que me interrompeste, mas nunca fui crítico ou professor de literatura. Por outro lado, nunca estive ausente durante estes anos, quando o meu desejo, muitas vezes, foi partir. Sempre que a voz se ergue da nossa comum garganta, sou eu quem fala, sobre livros e os outros temas, conhecidos ou ignorados. Única excepção, os poemas, relâmpagos em que estou em silêncio, ou em que me calo, porque o silêncio pressupõe uma realidade.
Sei que há muitos poetas críticos, muitos deles notáveis: Fernando Pessoa, Ruy Belo, António Ramos Rosa, Luís Miguel Nava. Só que, infelizmente, não há lugar em nós para essa riqueza, porque, desde 2001, que vives o pânico de não conseguir escrever; entregue a ti próprio, foste lançado para um mar de perigos e não sabes ainda se conseguirás sair. E saindo, espera-te o tempo devorador; não sabes se os poemas sobreviverão; quem sabe o que é a eternidade?
Quanto a mim, sinto-me impotente para te ajudar. Sei que estou em diálogo permanente contigo, mas não me sinto à altura dos poemas. A tua poesia é uma procura, mas que não está alienada das suas fontes, do espaço onde pode haver encontro. Que lugar resta para mim? Talvez não seja a tua opinião, mas tenho a sensação de ser inútil. Dou explicações sobre a origem da poesia, o seu processo, a sua finalidade, para teu grande desconforto. Fiquei em silêncio quando te vi depois da licenciatura, confrontado com a ausência do mundo, com as letras perdidas (título que me parece adequado para a tua poesia).
Gostava que não fosse assim, mas infelizmente, só tenho palavras para te dar. Só te posso fazer feliz com palavras. Que palavras te podia dizer que te preenchessem? Eu procuro conclusões, tu pareces o título de um livro de Herberto Hélder: os passos em volta. Que passo meu pode resgatar os teus passos; será que só a poesia pode ser resgatada num passo e tu ficarás perdido? Ou será que procuras um caminho mais difícil, e a minha situação será pior? Peço desculpa por citar outras obras além do livro A Claridade, mas não o consigo evitar. Numa dos teus primeiros poemas, de um conjunto de que só aproveitaste dez, escreves:

«Só ficaram os que cuidam da chama,
os últimos de nós todos,
os únicos que vivem e os únicos que morrem,
quem acenderá a sua parte de fogo?»

Dizes, também, numa das tuas frases e fragmentos: «Infelizmente, muitas vezes, o público que recebe uma obra e a reconhece é a gaveta do universo». É uma frase ousada, escrita no início. Reflecte a vivência do esquecimento, mas encontra o antídoto na própria vivência do tempo, porque esse esquecimento nascia de um exagero da razão. Só mergulhando nesta vida, só a partilhando, não nos perdemos. Se conseguisse corresponder ao teu grito, ficaria realizado.
No teu primeiro livro, procuras resgatar ao esquecimento a tua identidade, nele encontras a tua voz:

«Não procuro o silêncio
nem dizer algo,
só a voz ouvindo
o que não acaba.

Só ela
consegue devolver o ritmo
ao que é urgente
canto que não pode ser evitado.

Perante a sua vastidão
não é preciso pronunciar
o que deixou de pertencer ao tempo.

Oiço o rumor incessante
do que por ela passa
e para mim
nada mais é necessário.

No volume A Claridade, aproximas-te das tuas raízes, tentas encontrar o rosto dos outros, ainda que vivas esta experiência de modo não realizado. A tua poesia procura uma concretização, por meio do amor às palavras, de forma cada vez mais profunda:

«Desconheço o rosto de quem mais recordo.
sei que permanece depois
da despedida
na claridade possível.

Agora não tem características,
superfície onde nada se fixa,
tão próxima e desmedida
que sobressai
apenas uma luz deserta.

Nunca guardei o seu relevo,
só a vertigem e o abismo.

Mas reconheço-o sempre
e não lembro da mesma forma
o que apresenta um rosto nítido.»

Enquanto fui pretendente a crítico, acreditava em muitas noções, mal digeridas, sobre o que a literatura deveria ser. Era a favor do trabalho da linguagem, da vida além das palavras, da morte do autor, do outro em detrimento do eu. Depois descobri que, enquanto aprendiz de poeta, eras um autor intimista, em pleno reino da poesia, que só é capaz de escrever quando tem uma ideia. Não escreves, para ser preciso, com palavras. Tens as tuas palavras, mas rediges com o pensamento, transformado poeticamente.
És sóbrio, contido (neste livro até de mais), mas vives o excesso que te atormenta, os abismos da criação. Enquanto aluno de literatura não acreditava na palavra criatividade. Parecia-me uma cedência ao subjectivismo onde vives agora, num fértil terror. Mal sabia eu que seria essa a tua vocação, felizmente, enquadrada pela técnica, nem completamente perdida nem completamente domada.
Não é estranha a influência de autores como Fernando Pessoa, Carlos de Oliveira, Ruy Belo, António Osório. Mas o teu mestre foi António Ramos Rosa, sobre o qual escrevi um texto na faculdade, com o título «O olhar de António Ramos Rosa». Lembro o aperto de mão do Poeta, ao qual não consegui dirigir uma única palavra. Era para ter publicado este ensaio na revista dos alunos da faculdade por duas vezes, mas nunca aconteceu.
No primeiro livro foste, devido a este contexto, académico. Neste segundo (que é sempre uma armadilha), preocupaste-te com o julgamento dos leitores. Por isso, há nestes poemas uma recusa radical da sombra, para usar uma expressão do autor de Raiz Afectuosa. Deixaste os temas teóricos e escreveste poemas sobre a tua experiência. Sobre o esquecimento, a ausência, o amor pressentido e a própria poesia.
Nesta época, em que o homem conquistou a natureza e passou a viver no seu próprio universo, faz sentido que escrevas sobre a poesia, porque esta é a única parte desse universo que mantém a ligação à natureza. Além disso, só na poesia é possível haver comunicação. As identidades fragmentaram-se, o único aspecto que há em comum é a própria criatividade (embora me custe este termo). Nada na tua escrita escapa a uma intervenção técnica e, no entanto, procuras o ideal da simplicidade. A tua ocupação é prática e discreta. Não gostas dos meus discursos, porque te afastam desta simplicidade. A tua invenção bebe das fontes e, apesar de tudo, é sincera. És contra a amputação, queres ser inteiro.
As tuas palavras são objecto de uma criteriosa selecção, poucas são as eleitas: poesia, instante, relâmpago, mar, terra, estrela, fonte, dia, noite, claridade, sombras, passos, ruas, casas, muros. Escreves de forma a tornar a leitura aprazível, neste livro, enquanto no primeiro só estavas preocupado com a tua voz, em descobrires o teu dicionário. Ainda não tinhas encontrado a força vulcânica das palavras, encandeado pelo terror da existência. São poemas subtis, ao mesmo tempo, claros.
Para um antigo pretendente a crítico, educado na ideologia, é difícil não te fazer o reparo da pouca experiência na base dos poemas. Com essa tua recusa da sombra, tornaste tudo demasiado resplandecente, transmites, sobretudo, o sofrimento da tua ausência.
Na Idade Moderna, devido à secularização, os homens procuraram um fundamento subjectivo para as suas existências. Exigiram fundamentos religiosos, políticos, filosóficos, científicos ou existenciais; mas a poesia escapa a qualquer tentativa de delimitação, é a abertura ao incomensurável; é o que nos é dado encontrar, não a ideia prévia que temos. É mais fremente de vida o instante que vem de uma palavra do que artificiais cenários. É um livro que, talvez, não tenha tanta experiência como por vezes se exige, mas, se houver generosidade, será assim tão necessária? Não será esta uma exigência desactualizada? Coloquei-me estas questões, reconheço-lhes alguma razão. Basta sempre a poesia, desde que não seja apenas palavras. Espero não ser parcial, mas quando percorrias as ruas, em absoluta liberdade, entregue à volúpia do esquecimento, de certa forma vivias.
No entanto, tu próprio te fazes este reparo. Sou dos poucos que sabem que escreveste outro livro, ao mesmo tempo que A Claridade, que dedicaste «aos que são invisíveis como a luz do dia». O último poema deste livro desconhecido chama-se «Insatisfação»:

«Uma lâmpada basta-nos,
mas a luz do dia nunca é suficiente.

Ninguém fica pela reverberação
envolvente.
A luz é apenas a porta do dia,
claridade interminável mas incompleta.

Revela-nos que a verdade
também são coisas.
Não basta o relâmpago das palavras
ou o limiar dos poemas.

Se me contentasse,
talvez não a amasse tanto.
Só a desejaria uma vez
e não precisaria dela para sempre.»

No livro seguinte, não publicado, Terra Prometida, descobres a força das palavras, mas continua esta ausência. Vivendo os medos, encontraste raízes mais profundas. Um dos teus melhores poemas, parte deste livro, chama-se «Um olhar». Como primeira reacção, fiquei feliz, porque pensei que tinhas aprendido este poema no texto que escrevi sobre a poesia de António Ramos Rosa. Mas, reflectindo um pouco, tenho consciência de que o poema se deve mais à tua sensibilidade do que ao meu esforço inimaginável, que resultou num texto que ainda hoje me parece incompreensível:

Um único olhar secreto preencheu a minha vida,
desconhecido de si como o amor.
Valeu pela glória da posteridade,
pela atenção de um deus.

Nada me disse e tudo tenho a dizer,
um olhar fértil como o húmus,
condição das outras cores.
Tinha o verde do mar antes das praias,
o vermelho do sangue
de quem partilha da mesma sede.
Antes estava imerso no caudal da poesia,
com facilidade
voaria para outras galáxias.
Foi depois deste olhar que me apercebi
de como está só
quem se encontra com o mundo.

Um único olhar anónimo,
sem que ninguém reparasse no seu brilho.
Enquanto atravessava as ruas,
e os automobilistas não reparavam em mim;
se não me desviasse seria atropelado.
Enquanto os transeuntes
não me dirigiam um sorriso.
Despertei reduzido a poeira cósmica,
como se a casa onde vivi
se tivesse tornado indiferente,
perdido no meio de rostos familiares.
Depois de noites de risos,
veio a frieza da manhã,
como se tivesse acordado sozinho.

Um único olhar anódino,
mais silencioso que os desertos.
Atravessou as ruas com o estrépito das crianças,
os pombos levantaram voo.

Foi este olhar que pintou de cores
o filme a preto e branco da monotonia.
Bastou o seu relâmpago
e apercebi-me de como está só
quem se encontra com o mundo.
Apenas está acompanhado quem tem um destes olhares
e se descobre com uma única pessoa,
desconhecido de si como o amor.

Actualmente, rediges um livro como autor na cidade: a respiração é mais ampla, a vivência mais concreta. Pertences intimamente, embora ainda de forma incompleta, a um espaço físico e construído. Um dos últimos poemas que escreveste chama-se «A companhia da noite»:

«A noite vem ao nosso encontro
e sabe que nos retiramos sob os nossos telhados,
assim escrevo este poema
na cidade
e olho a chuva de persianas semi-abertas
por onde entra o frio de Dezembro.

Que quantidade de apartamentos,
onde inúmeras conversas latejam,
o que os pais dirão aos filhos,
que ruído se ouve entre as paredes dos amantes
se não têm paredes
e por fora não se ouve nada,
que música tocará nos salões de que estou privado?

A noite vem ao nosso encontro
no instante exacto em que as ruas se esvaziam,
de que vem à procura,
serão as nossas luzes as suas galáxias?
Por que fechamos as portadas depois do crepúsculo
sem um pedido de desculpas
a quem nos visita com tanta diligência?
Descobri-o uma vez,
quando cerrei as janelas do meu quarto
e apercebi-me do brilho de outro olhar.
Nos restantes serões,
apenas adormeci,
e a noite veio de novo ao nosso encontro
e não dormiu até à aurora,
para velar o nosso sono.

Agora sei que a noite não destrói a nossa laboriosa construção de cada dia, apenas a torna invisível. Depois de ter viajado pelas sombras, a minha poesia não me parece muito diferente da que escrevi no livro A Claridade. O livro tem esse nome, mas, para ser exacto, é um livro ameaçado, poema a poema, por uma noite cerrada. Como diz um dos textos, que também não é alheio à esperança: «A aurora acorda no último luar».
Em conclusão, se as minhas palavras serviram de algo, o esforço valeu a pena; mas o que sabemos nós, pessoas implicadas, sobre isso? Ainda bem que interrompeste o meu percurso, em favor da ocupação mais incerta à face da terra.
Falo sobre a literatura e os outros temas, sobre o que sei e o que não sei, enquanto escreves na maior ignorância. Se nada do que disser te trouxer tranquilidade, tem a certeza de que até eu fico feliz por ter sido, em muitos poemas, a parte de silêncio das tuas palavras.

Lisboa, 10 de Janeiro de 2010

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